No Rio de Janeiro, o
filme em cartaz “Relatos Selvagens” (Argentina / Espanha , 2014), de Damián Szifrón (direção e roteiro), tem obtido
grande sucesso, mantendo-se em cartaz por vários meses Não só a crítica especializada tem sido
unânime no seu elogio, mas também o grande público, entre ressabiado e curioso,
exprime um tipo de admiração que muito nos alegra reconhecer em uma específica
parcela da alma carioca. A nosso ver, não somos muito afins ao proclamado ‘humor
negro’ do filme (nosso sangue português, ao invés do espanhol repele o gáudio
sarcástico embora – infelizmente – acolha a farsa e o deboche em relação à
tragédia da condição humana). Quase que a contragosto, o carioca culto
padrão reconhece na trama e no espírito
da película, algo de profundo e primal que
atrai e machuca ao mesmo tempo. As gargalhadas são poucas na plateia; o
gênero não pode ser enquadrado, senão melancolicamente, na categoria comédia; a
crítica especializada acerta ao definir sua qualidade ‘cômica” como um humor sofisticado
e inteligente .
O filme, escrito e dirigido por Szifron, segue formato de antologia: são seis histórias diferentes, seus enredos entrelaçados por protagonistas levados ao extremo de sua tolerância emocional, em meio a diferentes circunstâncias particularmente tensas do convívio social que lhes parecem , inesperadamente, insuportáveis. Suas ações, a partir deste ‘ponto de ruptura’, extrapolam as categorias aceitas de moral e justiça . Sob o ponto de vista sociológico, psicológico e ético, a maior qualidade de “Relatos selvagens” é justamente mostrar como todos nós, independente de classe social e nível de educação, estaríamos, de uma forma ou de outra, sujeitos não só a “momentos de descontrole” mas a uma visceral irrupção de uma em geral desconhecida ou menosprezada violência interna. A partir daí, a reflexão racional apequena-se até a anulação para satisfazer a esta demanda emocional primeva. Embora a crítica especializada insista na ‘vingança’ latente em cada situação, como para justificar a ‘perda dos limites’ , uma hipótese mais psicanalítica – a escolhida nesta postagem – a colocaria mais como um pretexto para endossar a ‘barbárie’ pré-existente do que como causa.
As fotos utilizadas nos créditos iniciais do
filme são lindíssimas. Sugerem que todos
seríamos animais que agem por instinto quando ameaçados ou decepcionados além
de um certo ponto – sempre individualmente demarcado – mas a beleza mesmo das
fotos parece evocar nossa animalidade de forma neutra, não implicando em recusa
ou negação.
Para comprovar sua tese, o diretor Damián Szifrón filmou as seis histórias como
curtas-metragens de narrativas independentes, mas unidas por sutil fio
condutor, que, muitas vezes revisitando clássicos do gênero, alterna o
fantástico, diferentes facetas das tragédias edipianas, o manipulatório brutal,
o surreal pelo absurdo ( O Indivíduo x o Estado) , o catártico ...
O primeiro episódio, “Pasternak”, ecoa a série televisiva “Além da Imaginação”, de Hitchcok . Sua história se passa dentro de um avião: numa conversa casual, uma modelo e um crítico de música clássica se dão conta de que não apenas eles conhecem um tal Pasternak, como muita gente naquele voo já prejudicou o rapaz em algum momento do passado. O que parecia um simples acaso se transforma, então, numa trama de vingança, que remonta ao mais longínquo edípico passado.
O primeiro episódio, “Pasternak”, ecoa a série televisiva “Além da Imaginação”, de Hitchcok . Sua história se passa dentro de um avião: numa conversa casual, uma modelo e um crítico de música clássica se dão conta de que não apenas eles conhecem um tal Pasternak, como muita gente naquele voo já prejudicou o rapaz em algum momento do passado. O que parecia um simples acaso se transforma, então, numa trama de vingança, que remonta ao mais longínquo edípico passado.
Já o segundo episódio, “Las ratas”, para alguns críticos, seria o menos exitoso
do conjunto, com uma história de vingança mais convencional. Nele, a garçonete
de um restaurante percebe que o cliente que acaba de entrar é o sujeito que
levou seu pai ao suicídio anos atrás. Dali, seu dilema, compartilhado com a
cozinheira, é se veneno de rato vai bem ou não com batatas fritas. A solução final permite uma interpretação
psicanalítica de muita sutileza.
O terceiro episódio, de grande impacto,“El más fuerte”, é focado na briga de dois motoristas que se estranham numa estrada erma. Como costuma ocorrer nessas situações, uma palavra mal colocada vai levando a uma ira de ambas as partes cuja desproporção só é compreensível pelo conflito de classes e – por que não – por uma reprodução neo-bíblica da contenda entre o irmão privilegiado e aquele defraudado pelos fados. Conclusão também psicanaliticamente falando, perfeita!
O quarto
segmento, “Bombita”, provavelmente é o mais focado em uma problemática
sociocultural, abordando uma burocracia estatal, a que estamos acostumados no
Brasil. Darrín interpreta um engenheiro que
tem o carro indevidamente rebocado no
dia do aniversário da filha. Ele é obrigado a ir ao departamento de trânsito
para apanhar o veículo e tem que pagar uma taxa. Isso sem falar na multa que
chega depois Na sequência, por não
aceitar passivamente a injustiça, ele pode perder mulher, filha e
emprego. Mas, como o personagem de Michael Douglas em “Um dia de fúria” (1993),
ele resolve reagir.
Quinto curta, “La propuesta” apresenta uma discussão de classes quando um pai riquíssimo oferece dinheiro para o caseiro a fim de livrar seu filho da prisão, pelo atropelamento de uma mulher grávida. Para completar a tensão que se forma, o filme ainda expõe uma ganância que pareceria absurda, mas que, na fauna de “Relatos selvagens”, é perfeitamente normal. Afina-se ao mesmo instinto predador que levaria saqueadores a despojarem as vítimas de um acidente.
“Hasta que la muerte nos separe”, o último episódio, é um desfecho adequado que resume bem toda a qualidade da direção de Damián Szifrón. Sua história é centrada numa festa de casamento, animadíssima até a noiva descobrir que o noivo não era exatamente fiel, estando mesmo sua amante presente ao casório. A esta perversidade sutil a noiva responde com aquela acintosa, em um legítimo movimento catártico, que se conclui pela violência da aceitação cínica pelos noivos do desmascaramento público dos afetos envolvidos.
Psicanaliticamente, os Relatos são histórias de
enredos simples, sobre fatos cotidianos, que por isso provocam identificação
quase imediata do espectador com os grandes temas passionais que perpassam a
relação entre o Consciente e o Inconsciente , onde se situa , de ordinário, a “barreira
de censura” que fundamenta o que se chama de “Civilização” . Vencida esta barreira,
fazer justiça com as próprias mãos (direta ou indiretamente), fraudar as normas
a favor do interesse dos próprios esquemas afetivos etc. seriam uma expressão da requintada selvageria
que apenas cochila na fimbria da consciência de cada um de nós. As explicações psicanalíticas esboçadas acima – de maior validade por ser este um filme
argentino, nação adepta desta disciplina do autoconhecimento – apenas apontam
um início de investigação possível, por via artística, ao negligenciado (no que
diz respeito ao cidadão padrão ocidental urbano) tema da violência.
O psicanalista do episódio inicial, "Pasternak" |
Por estas e outras razões, um filme imperdível.
Relatos Salvajes
Argentina / Espanha , 2014 - 122 minutos
Comédia
Argentina / Espanha , 2014 - 122 minutos
Comédia
Direção:
Damián Szifrón
Damián Szifrón
Roteiro:
Damián Szifrón
Damián Szifrón
Elenco:
Darío Grandinetti, Ricardo Darín, Oscar Martínez, Leonardo Sbaraglia, Erica Rivas, Rita Cortese, Julieta Zylberberg, Diego Gentile, Osmar Núñez, María Onetto
Darío Grandinetti, Ricardo Darín, Oscar Martínez, Leonardo Sbaraglia, Erica Rivas, Rita Cortese, Julieta Zylberberg, Diego Gentile, Osmar Núñez, María Onetto
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