domingo, 8 de fevereiro de 2015

“Wild” ou “Livre” na tradução carioca

A tradução do  filme em cartaz no Rio de Janeiro de “Wild” para “Livre” bem expressa a preferência do tradutor-intérprete, afinado com uma dada tendência dos cariocas da montanha,  de enfatizar na jornada da protagonista a busca de liberdade em relação a um seu atributo ‘Selvagem” a que a tradução literal do termo ‘wild’  do inglês melhor corresponderia.


Mas tal preferência pela “liberdade” também justifica a leitura que nos parece melhor convir à película: trata-se de uma ‘viagem íntima’ empreendida pela protagonista à procura do reencontro consigo mesma, obrigando-se a um sobre-esforço constante e indo além de qualquer elaboração lógica em prol de atender a uma inspiração da afetividade.  É também neste sentido que consideramos bem ajustados tanto os flashbacks ao longo da  caminhada – que revisitam, transformando-os no novo contexto, os eventos traumáticos que teriam levado a personagem à sua débâcle - quanto uma interpretação de Reese mais suave (não se justificando, pois, as críticas de  que teria sido pouco ‘selvagem’ nas cenas mais fortes) 

Wild, filme protagonizado por Reese Witherspoon, é baseado  em fatos reais, sendo uma adaptação do  best-seller "Livre – A jornada de uma mulher em busca do recomeço" (Objetiva), de Cheryl Strayed. Foi, aliás, a própria Reese, que, aos 38 anos e também produtora de ‘Wild’, contatou Cheryl diretamente para comprar os direitos do filme depois de ler o livro antes da publicação. Em termos da carreira de Reese Witherspoon, o momento em que a protagonista arranca uma grande unha do dedo do pé ensanguentado na cena de abertura de seu novo filme  torna  claro que a atriz vencedora do Oscar tomou nova direção em relação à maioria dos seus filmes, onde em geral dá vida a mulheres bonitas e alegres. De acordo com este desígnio, e em termos da busca de veracidade do longa, o diretor Jean-Marc Vallee, exigiu que os espelhos no trailer de maquiagem fossem cobertos, para evitar que Reese não soubesse como estaria sua aparência sem a maquiagem. "Foi duro, eu nunca me vi em um filme como esse antes", disse Reese antes da exibição Festival Internacional de Cinema de Toronto, recentemente. 

O enredo do filme entrelaça dois subgêneros  importantes no cinema e na tradição cinematográfica norte-americana: o ‘on the road’ e a   jornada em busca de si mesmo.  É com esta clara intenção que a personagem Cheryl parte em busca de seu próprio amadurecimento. Na pele da mulher alquebrada, disposta a andar da fronteira do México até o Canadá pela Pacific Crest Trail, uma das trilhas mais difíceis dos Estados Unidos, ao longo de seus 1.770 quilômetros, ela vai revivendo e purgando uma série de infortúnios passados. Após perder uma mãe sofrida, mas corajosa e otimista (Laura Dern), para um câncer veloz e cruel, Cheryl sucumbe ao vício em heroína e sofre o fim do casamento por conta de sua promiscuidade incontrolável. 

Quando inicia sua ‘via crucis’, Cheryl está lamentavelmente despreparada para ela.
Fica sem comida e água, perde as botas e tem o corpo coberto de feridas. Mas entre sua bravura e a bondade de estranhos, ela aguenta 94 dias, enfrentando variações climáticas que vão do deserto às neves, até chegar à Ponte dos Deuses que é o fim de sua jornada. Ali, pronuncia as belas palavras de autoaceitação e transformação que são o prenúncio para uma vida mais feliz e produtiva. 


“Livre” descreveria um ritual de passagem a ser realizado através da reconexão do indivíduo urbano com ‘o grande Ar Livre” , essencial (para quem escolhe esta via) para uma mudança mental e existencial  profunda, qual a relatada na película. O gênero ‘on the road’ remete para a natureza selvagem concreta, por nós perdida há tão pouco tempo,  algo que a nossa mente parece ainda não ter conseguido processar em apenas três ou quatro gerações. Podemos também associar esta natureza, em termos psicológicos, com a nossa própria instintividade, que precisaria deste confronto direto com algo mais visceral e potente que ela própria , para imprimir uma nova tonalidade, mais amena consigo própria, à nossa admissão, compreensão e novas expressões das ‘formas elementares’ da nossa libido. 


 Portanto, ‘ponhamos o pé na estrada’ para assistirmos ao filme. Tendo estreado há apenas um mês, ele está em cartaz em uma única sessão, a das 14;10 hs., no Cine Laura Alvim. Como, para fazer honra ao espírito da película, eu fui caminhando do Jardim Botânico à Praia de Ipanema (pela Lagoa, em um trajeto que durou exatamente uma hora), aviso que a projeção começa exatamente no horário e não há trailers antes. Como a plateia estava cheia, quase perco o início e o lugar. Tomara que esta procura dos espectadores mais sensíveis prolongue a estadia do filme em nosso circuito, mas não é garantido.  

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