sábado, 9 de março de 2013

A picada daVarejão


A exposição de Adriana Varejão no MAM espreguiça suas asas furta-cor, prestes a alçar voo. Apressai-vos, espíritos de escol! Seu deadline foi antecipado de 17 para 10 de março, este domingo.
 As moscas-varejeiras (ou Dermatobia hominis) são bem conhecidas em nossas terras, dada a frequência com que suas larvas provocam infecções parasitárias nos tecidos ou cavidades do corpo do hospedeiro.  São moscas de grande tamanho, geralmente possuem bela coloração verde azulado metálico; depositam os ovos nos tecidos vivos ou mortos de vertebrados ou substâncias orgânicas em decomposição. A larva é parasita obrigatório, mas os adultos têm vida livre.

Mestiça, de 2012 (auto-retrato) 
Alguma associação possível com a impressão pungente que nos perpassa na visita à produção de Adriana Varejão?

Com curadoria de Adriano Pedrosa, Histórias às margens traz trabalhos fundamentais da artista produzidos desde 1991, mais da metade deles inéditos no país, vindos de coleções como Fundación “la Caixa” (Madri) e da Tate Modern (Londres).

Nas palavras da própria artista, “margem remete a mar, mas também àquilo que está fora do centro”, daí o título da mostra.  Histórias às margens são, na palavra do curador, “histórias marginais, muitas vezes esquecidas ou colocadas às margens pela história tradicional, sejam elas histórias do Brasil, de Portugal, da China, da arte, do Barroco, da colonização; histórias que Varejão pesquisa, resgata e entrecruza em suas pinturas”, uma vez que para ela, a história é algo vivo e o passado está sendo constantemente recriado.
Nas salas, distribuem-se 42 obras, e, além das inéditas no Brasil, algumas produzidas especialmente para a exposição. Dentre elas, a pintura acima, em grande formato, com o panorama da Baía de Guanabara, Rio de Janeiro, no qual a artista retoma sua série Terra Incógnita, iniciada em 1992, introduzindo elementos de seu trabalho atual. Há uma grande e bela serenidade neste quadro, constelado de elementos chineses...
Linha equinocial, 1993
  Explorando imagens e técnicas clássicas, sua técnica, do ponto de vista formal, é impecável e, nas pinturas, cria uma aparência realista perfeita. Mas é a partir desta impecabilidade que Varejão a viola, abrindo feridas em mapas e nas faces de suas repousadas modelos. Com isto, coloca em segundo plano o debate estéril sobre a pertinência atual da pintura figurativa. Ver Contingente (2000) (abaixo)




A contundência do conjunto das obras é impressionante, em boa parte devida à temática de revisionismo histórico, uma tônica nas interpretações de seu trabalho, que seria um dos fatores – aliado a seu grande talento – de seu sucesso internacional. Pode ser identificado, realmente, um caráter agressivo na poética da artista, envolvendo, por exemplo, uma revisão crítica de imagens de um Brasil idílico, criado por artistas viajantes como Frans Post (1612-1680).

Carne à Moda de Frans Post (1996)
ver detalhe da borboleta recortada da palmeira e servida no prato  brasonado 

Uma das marcas registradas da artista são os azulejos de estilo português, que ela emprega sob diversas óticas, algumas particularmente explosivas. Preferimos aquelas em que o contraste das diferenças é assinalado de forma mais sutil e graciosa, deixando à imaginação do espectador a tarefa de creditar um sentido quiçá doloroso aos arcabouços simbólicos do motivo.

Tiles and Tea II  (1997)
Nos detalhes, a Crítica e  (talvez) o Resgate 


'O olho extraído não deixa de ver...'


Neste sentido, aliás, nos comoveu, antes, a conotação que nos foi permitida reconhecer – a Obra de Arte é Aberta! – mais de tristeza do que de revolta em quadros em que as questões dos ‘colonialismos’ vão além da dimensão política e abordam a sujeição na vida íntima - e as possibilidades de revertê-la e/ou transcendê-la...

Ver Testemunhas oculares x, y  e Z  (1997)  (detalhe ao lado; neste observe-se a elegância da incisão na tela, que reproduz a pupila onde ela não mais existiria...) 

A luneta surpreende, no escrutínio do globo ocular,  um mundo silencioso de testemunhos e sonhos que nega a cegueira...









Também foi este o viés que nos encantou em outras figuras femininas onde um quê de Antropofagia se mescla à aceitação sorridente do machucado (auto)infligido, em nome das regras das Culturas em questão. Ver da Chinesa (com agulhas de acupuntura no rosto) à Comida, ambas de 1992.





O percurso é organizado em ordem quase toda cronológica; no nosso caso, ignoramos este pormenor e acabamos por conhecer primeiro as obras mais recentes. Desta forte primeira impressão, quem sabe, provenha a percepção – que nos ficou no olhar –  de um devaneio menos desolado enfeitiçando a mostra.

Ou seja, na Pérola Imperfeita (2009) (ao lado)  há um sol e a gema do ovo. 

Entre as últimas obras realizadas por Adriana, estão quatro trabalhos recentes, como a Pérola acima e Pratos com Mariscos de 2011, abaixo. Os grandes pratos de parede, com frutos do mar ou frutas, segundo os especialistas, estariam sinalizando um novo caminho em desenvolvimento na artista. Sorte nossa, que preferimos o belisco ao bodoque e a picada ao punhal para atiçar a curiosidade; assim como o bisturi ao escalpo para esmiuçarmos as entranhas da alma...



Saindo da Mostra, detivemo-nos a escutar um artista-professor discorrendo, apaixonadamente, sobre o mural à entrada da exposição, no andar inferior. Aliás, em toda a mostra, muitos professores explicavam a seus grupinhos de alunos onde e porque Varejão estaria dizendo isto ou aquilo. Pode ser proveitoso dar uma de penetra e ouvir-lhes as hipóteses. Este lente, no piso térreo, aproveitava a ocasião para explicar aos discípulos porque o primeiro quadro em que uma tela em branco fora rasgada ganhou crédito artístico mundial e muito dinheiro. Pela primeira vez uma tela era tratada não como suporte para a pintura, mas como um corpo em si, sujeito à manipulação artística. Varejão também deixaria explícito que ela trata suas pinturas como corpos e não apenas como meras telas. Para evidenciá-lo, o mestre enfatizava seu uso de buracos, rupturas, protuberâncias, fragmentos decepados quais cacos e lascas...



 Mas aproveite-se, ao invés, talvez, para, esgueirando-nos por trás das paineis expostos,  surpreender os recortes de Beleza, rasgões esquivos providenciais na sólida arquitetura do MAM, como digna moldura à magnífica produção de Adriana.


Histórias às margens narradas por Adriana Varejão

17 de Janeiro a 10 de Março de 2013

3ª a 6ª – meio-dia a 18 hs.
Sab., dom. e feriado – meio-dia às 19 hs.
Entradas: RS 12,00 ou R$ 6,00 (meia)
Às quartas-feiras: entrada gratuita.

Museu de Arte Moderna
Av Infante Dom Henrique 85
Parque do Flamengo
20021-140
Rio de Janeiro RJ
T 
 +55 (21) 2240 4944


Outros quadros da exposição em:

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