sábado, 8 de agosto de 2015

Vidas ao vento

O canal da Net Telecine Cult tem-nos presenteado com a exibição de Vidas ao Vento, Kaze Tachinu (em japonês: 風立ちぬ ) um filme de animação japonês produzido em 2013 pelo Studio Glibli, escrito e dirigido por Hayao Miyazaki, seu último filme antes de se aposentar.


O filme poetiza em torno da biografia de Jiro Horikoshi, o designer que criou o famoso avião de combate japonês Mitsubishi A6M Zero, um dos mais engenhosamente construídos e tragicamente eficazes usados na Segunda Guerra Mundial. Jiro Horikoshi, um jovem que vive em uma cidade do interior, anseia em se tornar piloto de avião, mas sabe que nunca conseguirá, por conta de sua miopia 
Desde os dias da infância do engenheiro, ao seu papel fundamental no esforço de guerra, o longa acompanha Horikoshi nos tempos difíceis que antecederam o conflito, passando pelo grande terremoto que devastou Tóquio em 1923. Sem justificá-la, o enredo (ver trailer abaixo) expõe as razões de ordem socioeconômica que teriam ‘arrastado’ o Japão à guerra; na película, os protagonistas sofrem com ela e o sonho de voar surge-nos, pois, como a resposta possível a ser dada pela imaginação criadora – resistência e contradição – a uma realidade impossível de ser contestada diretamente.


As  partes da cinebiografia que retratam o inventor em sua vida privada, porém, são fabricadas. Elas adaptam parcialmente o romance The Wind Has Risen (1937), de Hori Tatsuo, que se passa em um sanatório para tuberculosos em Nagano, Japão. 
Aqui e ali, o diretor detém-se na paixão do jovem designer pelo ‘sonho de voar’ que é retratado quase que como uma realidade paralela, em todas as suas dimensões possíveis, concretas, psíquicas e simbólicas. O próprio amor entre o jovem casal mescla-se à sua relação intrincada com ‘voar acima dos obstáculos que a pudessem dificultar”, como na delicada cena em que Jiro trabalha em seu projeto em casa desenhando com uma mão, com a outra enlaçando a da esposa, que doente, jaz a seu lado, na cama.
O resultado, em sua bem temperada mistura de ficção e fatos (sempre colocando a intenção e fantasias da liberdade de voar  acima de seu doloroso consumar-se em prol da guerra), é arrebatador e extremamente romântico. O título brasileiro (e também o título original, “O vento se ergue”), justo ao filme, lírico e belo, foi extraído de um poema de Paul Valéry.

Criticada por humanizar um personagem que, indiretamente, teria participado de um esforço de guerra que causou tanta destruição, a animação tem uma mensagem clara, de pacifismo, um tema recorrente na obra do veterano realizador japonês. Fala-se frequentemente nele de que voar é um "sonho amaldiçoado" e são flagrantes as condições em que o avião é construído, enfatizando a dissociação entre arcaico e inédito no Japão da época.
Carros de boi transportam o novo modelo para o campo onde será testado. 
Como no romance de Mann, os doentes
tomam o ar puro, tido por regenerador,
 na varanda do sanatório, envoltos em cobertas.
Um personagem misto de Sherlock Holmes
e Castorp (o filósofo da Montanha Mágica)
encarna a dimensão crítica do filme
e refere-se a Hitler como a um louco.  
Mais sutilmente demonstrada – e exigindo um pouco mais de cultura por parte do público – é a releitura acurada feita pelo filme do clássico de Thomas Mann, A Montanha Mágica. O livro retrata um sanatório de tuberculosos nos Alpes, também ás vésperas da guerra, de forma a que se evidencie como certo escapismo infiltra-se , inevitavelmente, nos sonhos de uma nova geração, conduzida por outros às margens de da tragédia inevitável. 

  
Como é comum na obra de Miyazaki, a arte do filme é deslumbrante. Dos fundos pintados, em que cada detalhe remete ao amor jovem e puro em sua ingenuidade acariciante ( e acariciada pelos acúmulos amplos de nuvens, sempre varridas pelas sombras provocadas pelo vento)  às retratações dos aviões e ao carinho especial como são mostrados os projetos e cálculos, tudo é belíssimo. A sonoplastia é igualmente brilhante, com os sons das aeronaves lembrando lamentos de criaturas - um pequeno eco das fantasias épicas do currículo do diretor - e complementa a bela trilha sonora baseada em acordeons de Joe Hisaishi.

Ao final, Vidas ao Vento é uma celebração da criatividade e engenhosidade humanas, uma que lamenta nossa capacidade para a destruição da maneira mais poética possível. No anterior  Mononoke, Miyazaki explicitara a maior mensagem das suas obras "É preciso ver o mundo com olhos destapados do ódio". Este aforisma se repete em todos os seus filmes e é em Vidas ao Vento, que atinge, talvez, seu apogeu.









 A película   ganhou e foi indicado para vários prêmios, incluindo nomeações para o Oscar de Melhor Filme de Animação , o Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e Prêmio da Academia do Japão para Animação do Ano.Se realmente este for o último filme de Miyazaki, que anunciou sua aposentadoria recentemente, ao menos ele deixa o cinema com uma de suas maiores obras-primas.


Ver trailer em:


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