segunda-feira, 23 de março de 2020

Inveja

Não sou dada a invejas. Aceito-me e aos outros mais ou menos como somos, sem ímpetos exagerados de trocas de papéis ou atributos.

Mas neste momento da epidemia da mesmice infernal, prescrições incessantes de cuidados passivamente aceitos por todos (como se a o modelo de risco epidemiológico não tivesse imensas restrições !)  e covardia existencial finalmente justificada em sua formatação de louvável prudência , minha revolta explode.


Na porta do Banco, na margem da  sociedade, o casal de mendigos  dorme , abraçado, em pleno e cálido dia ! Um  fiel cachorro cochila a seus pés !  Seus pertences ... contidos todos numa saca de supermercado amarfanhada, ah que fantasia de liberdade me bafeja como um presente inesperado  ...

Cochilam e murmuram e se espreguiçam , no asfalto  imundo , como se em coxim de nuvens prateadas estivessem.

Irresponsáveis, magníficos, divinos como deuses caídos da Transcendência do Ser  à miséria encarnada, que , todavia, seguros de seu estatuto perfeito, ignoram totalmente .

E ela me vem, a Inveja ! Totalizante, paralizante.

E quase  me alegro de a sentir. Minha alma não foi  ainda completamente subjugada aos pretextos sensatos que mal disfarçam o verdadeiro  pânico por trás disto tudo : o do morrer  prematuro por não ter sido servil o suficiente à sua função de mero elemento estatístico em uma arbitrária tabela equalizante à qual suas possibilidades de escolha foram reduzidas .

Procuro uma imagem que traduza o que sinto. É preciso que seja Bela, muito Bela. Que faça jus à 
incongruente originalidade dos sentimentos que me suscita o casal rebelde.



Como um grito  de cor transformando as listas da prisão em uma coreografia de contrastes, fruição estética  que por um instante engambela o tropel da Vida abafado  !




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