Seres reflexivos amam a chuva contínua, a única capaz de trazer um resquício de frio ao nosso inverno bruxuleante e impor a quase obrigação de recolhimento aos dias em geral perambulantes ... Atmosfera propícia àquela leitura 'sem escalas' de um livro exigente e apaixonante.
Ademais, a chuva nos envolve em bruma úmida, similar à névoa do esquecimento que assombra os personagens do magnífico
O Gigante Enterrado de Kazuo Ishiguro.
Após dez anos sem escrever (desde o tristíssimo
Não me abandone jamais),
agora o autor remonta a um período mítico, na Inglaterra logo após o reinado de Arthur, onde os habitantes são assolados por uma névoa de esquecimento do passado. Um casal de idosos resolve sair da pacífica mas empobrecida situação em que vive, em uma aldeola bretã, à busca de um filho de que mal se lembram. Logo, a jornada adquire proporções épicas, nos moldes das epopeias cotidianas que tão raro assumem aos olhos dos próprios agentes estas dimensões.
Entram em cena personagens cuja importância vai crescendo com a narrativa, como o guerreiro Wistan, o menino aprendiz Edwin e o antigo cavaleiro de Arthur, Sir Gawain. Monges e ogros, barqueiros tristes e mulheres desesperançadas permeiam as peripécias. As sucessivas descobertas revelam - bem ao feitio pessimista de Ishiguro - que, em uma terra que mal deixara para trás batalhas cruéis entre saxões e bretões, a única alternativa ao oblívio seria o profundo ressentimento. Também na vida privada, seria melhor o silêncio do que a lembrança, mesmo nos relacionamentos aparentemente mais amorosos. O moto que percorre esta longa digressão sobre memória, significado da vida e da morte seria, pois: "
Remember everything, and you lose the
ability to forgive."
|
Kazuo Ishiguro, japonês de nascimento,
naturalizado inglês |
Nosso interesse por este livro é , todavia, menos passivo do que o demonstram ser as várias críticas consultadas. Frisar uma situação ética e psicológica vigente, no que diz respeito ao enfrentamento íntimo do Mal (em termos de relações entre grupos e entre indivíduos) e a dificuldade do próprio autor em lhe dar solução menos convencionalmente trágica, não invalida a fonte de inspiração que a obra representa (lembremo-nos de Umberto Eco e sua célebre
Obra Aberta). Além disso, as conjunturas históricas, filosóficas e psicanalíticas abordadas sequer estão confinadas a uma determinada época - a fábula que o autor constrói tem caráter de alegoria, donde é atemporal. A profunda melancolia que nos invade à medida que os melhores esforços dos personagens - que sem exceção, Ishiguro nos torna simpáticos (incluindo a dragoa Querig, que produz a névoa) - vão sendo frustrados em seus desígnios (bem intencionados e equivocados a um só tempo) nos diz de nossa similar perplexidade ante os eternos dilemas em torno da memória, do amor e da morte. Mas não seria este, de per si, um valor substantivo do livro? O de trazer à lembrança o tema da memória e suas ambiguidades, em época eminentemente de fugaz impermanência?
Para um primeiro contato com o livro, alguns minutos da leitura - em lindo inglês - de suas primeiras páginas, disponível no site de
The Guardian
http://www.theguardian.com/books/2015/mar/04/the-buried-giant-review-kazuo-ishiguro-tolkien-britain-mythical-past: