domingo, 23 de fevereiro de 2020

Fantasia e boas intenções: xamanismo no século XXI

Hoje, domingo de Carnaval no Rio, penso em como associar o espírito lúdico da data a algumas experiências mais sérias, no recente movimento de reaproximação da Natureza que venho realizando,  marcado por viés ecológico.

Está bem silencioso, por enquanto, aqui, de manhã, no meu bairro carioca verdejante ... E retomo a descrição da minha recente viagem ao sítio de Vera, onde pessoas da Cidade e do Campo reuniram-se para um informal seminário sobre temas ecológicos.  Na noite do sábado de minha chegada teve lugar um ritual xamânico, promovido pelo mesmo rapaz que, no dia seguinte, apresentaria uma competente palestra sobre  Permacultura.

Como Krenak em seu  livro Ideias para adiar o fim do mundo bem assinala, precisamos do sonho, não como eventualidade noturna, mas incorporado na própria consciência de quem somos, como guia dos trajetos em nossa vida.  Filosoficamente, podemos traduzir isto como 'precisamos de  um  'ideal' ; em termos poéticos, este tipo de atividade mental corresponderia a uma 'fantasia'.

Cerimônias de cunho religioso se enquadram bem nestes parâmetros . A atividade de fim de semana promovida pela Vera incluía a reativação de práticas agrícolas ancestrais, remetendo à cultura indígena, em que o cuidado com a Natureza se entrelaça com a função mágica de alguns rituais coletivos. Assim, um ritual xamânico foi bem adequado  a servir de introdução ao evento.

Neste primeiro momento, no sábado à noite, éramos uma maioria de pessoas de Cidade, amantes da Natureza, atraídas pela esperança de poder contribuir com um resgate produtivo de nossos Campos. Antes do ritual propriamente dito, houve um jantar predominantemente vegano (mas com um pouco de carne à parte, para os paladares irreversivelmente viciados), onde sopas e saladas e frutas, todos de consistência muito leve, deixavam-nos em uma disposição  etérea. Seguiu-se um bate-papo bastante esotérico, enquanto esperávamos outros participantes chegarem, vindos de lonjuras rurais.

Foi uma surpresa ver reeditados, em nossa agradável conversa, nomes de pensadores e místicos  que estiveram em plena voga há cerca de quarenta anos atrás. E constatar sua influência sobre gente bastante jovem sonhadora-idealista, que os tinham como modelos para suas ideias. Gosto muito de Krisnamurti e Castañeda, por eles citados. Tenho menos afinidades com Osho, porém admiro a fidelidade de quem nele respeita a memoria de um Mestre retroativo!  Espanta-me um pouco, contudo, não ter surgido neste quase meio século que os separam de nós, nenhum novo líder intelectual-alternativo, capaz de provocar  similar  impacto cultural.

A noite avançava, uma fogueira foi acesa e o intenso calor por ela produzido, no verão em Macaé, provocara-me um envolvente  torpor, talvez proposital para estimular o acesso a outros níveis de consciência.

 Enquanto isto , lindas cestas de palha com os mais  belos 'frutos da terra' , legumes, frutas e flores, colhidos há pouco, eram arranjados com cuidado. Dentre eles, uvinhas  que eu havia trazido de meu sítio, oriundas de uma muito antiga parreira de estimação.
O oficiente da cerimônia e sua bonita
  inteligente e articulada namorada 
Uma das convidadas citadinas do evento, afeita a outros horizontes culturais - viveu muito anos na França -  é adepta de práticas espirituais druídicas.  Dentro do amplo espírito ecumênico que regeu o encontro, ela orquestrou  - antes do culto xamânico -  uma prática esotérica dos druidas,  sacerdotes celtas que adoram particularmente as árvores (qual o carvalho).

Nesta cerimônia preliminar devíamos circular a flamejante fogueira várias vezes,  ora no sentido horário, ora ao contrário. e depois, provarmos o pão, o sal e o hidromel servidos por três de nós,  representando a Jovem, a Mulher Adulta  e a Anciã.


 O ritual xamânico começou com a oferenda ao fogo dos frutos da terra.   Não posso negar que tal tradição - creio que tolteca - me afligiu bastante. Foi uma infeliz sensação ver as minhas uvinhas incineradas nas chamas em honra a uma entidade  abstrata que, pelo jeito, preza o sacrifício.  Mas talvez seja esta mesma a intenção. Enfatizar que toda dádiva só nos é concedida em troca de sofrimento e perda e dor.  Embora eu seja firme adepta da necessidade de enfrentarmos sempre os desafios que opõem símbolos de Morte e Vida em nossos corpos e almas, a destruição gratuita dos presentes vegetais me pareceu um  retrocesso a uma simbólica cultural arcaica. E, receio, não obstante as evidentes boas intenções ali embutidas, sejam elas completamente inoperantes em termos de resgate da Tradição em prol de sua revitalização produtiva  nos Novos Tempos.

Seguiu-se uma longa ... ah , muito, muito  longa ... sessão de cantos tradicionais, desejando o retorno dos anciãos e, com eles, a volta a uma fartura paradisíaca na Terra, alternados com relatos de vidas edificantes. O nosso oficiante, sua namorada  e um seu amigo sitiante  esmeraram-se em tentar nos fazer participar do que seria uma Festa, uma Celebração,  um abandonar-se ao Prazer da Companhia. Inclusive, fizeram correr entre nós, um tamborzinho e depois uma flauta, ambos muito rústicos, para que partilhássemos a produção de sons em conjunto ... a grande maioria de nós, seres citadinos,  declinou do convite . Alguns dentre estes, como eu mesma, não conseguem se desvencilhar dos preceitos higiênicos de evitar o uso coletivo dos mesmos copos, bocais etc . Com toda seriedade e respeito, objetamos a que este ato corresponda a uma comunhão de almas e preocupamo-nos com os germes que talvez não infestassem os tempos ancestrais como o fazem agora...

E as horas fugiam , o fogo ardia, o suor escorria... nosso corpo citadino desacostumado a posições incômodas, oscilava ... "Acho que vou desmaiar " , pensei. Mas talvez todo este aparato visasse mesmo à exaustão, para que um outro nível  de consciência pudesse emergir. E assim aguentei... mas o estado mental desejado não compareceu...

Na estrada lá embaixo, carretas imensas continuavam a assombrar a via dupla, em  fileiras ininterruptas e zombeteiras de pesadíssimos e arrogantes veículos carregados de produtos geridos por grandes empresas, a  expressão concreta do desafio do Capital  que teríamos a enfrentar ... e que se tivesse coração e cérebro estaria solenemente nos ignorando... 

E, voltando ao aqui e agora, graças a Deus - e/ou aos vários Xamãs e Druidas que poeticamente aprecio - meu bairro citadino continua quieto na Domingo de Carnaval.  As diversas tradições nativas apreciam as Festas, o Espírito de Comunidade que as inspirariam . Acredito que elogiariam o Carnaval em suas manifestações agora já remotas, de congraçamento lúdico ingênuo e docemente transgressor, no contexto da brincadeira.

Hoje, o gregário se presta quase que exclusivamente à homogenização. Não há sequer mais variedade de fantasias, pela rua. Mocinhas em onipresentes biquinis com meias arrastão são cópias mais nítidas ou mais borradas umas das outras.  A histeria do politicamente correto estigmatiza os 'disfarces'  de índios ou havaianas, pois a 'identidade' oficial de cada um de nós não nos permite mais nela incluirmos aquelas que fantasiamos serem nossas. Como se "fantasiar"  fosse um demérito mental ou ser a inspiração para uma fantasia, uma agressão moral!

Quem disse que a minha alma peregrina não foi ou é uma índia em outra dimensão? Por que não posso assim me reconhecer melhor , no reino  lucidíssimo e , às vezes, mais real-do-que a-realidade da Fantasia  ?!?!?!   Negar esta abertura para a encarnação de um Ideal  corresponde ao  enterro do Sonho no seu sentido integral a que aludimos acima e ao total escárnio para com a Essência da Arte  !!!

Viva a Luz do Fogo Eterno !!! 
 Venham, pois, outras vigílias, infindáveis tentativas de ir além das dicotomias, como as que separam Tradição e Atualidade, Ciência e Misticismo e ... por que não ... Humor e Seriedade!

 Valeu a tentativa. amigos Filhos do Sol (dos toltecas)  e da Lua (dos druidas) . Da próxima vez, experimentemos talvez um outro tipo de Encontro, aproveitando para sanar as lacunas simbólicas deste até acharmos uma maneira de virmos a desenvolver, juntos,  uma expressão de Potência capaz de desbravar novos Caminhos, planejados nas interseções de Passado e Futuro, bem calçados no Presente,  alternativas eficazes à Rodovia asfaltada Dominante.





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